As palavras de Shakespeare na boca de Othelo tornaram-se clássicas e remetem-nos para a sempre presente questão da existência humana, para as suas dúvidas e angústias, as suas vississitudes e fragilidades. Quem nunca se terá, em algum momento da sua existência, questionado sobre o sentido da sua vida, sobre se lhe fazia sentido continuar a viver, sobre se existe algum propósito no facto de respirar, ter um coração que bate e, acima de tudo, um cérebro que pensa e que é a sede de todas estas dúvidas…? De um modo ou de outro, sabemos que é essa existência, é essa vida o que de mais precioso temos e que tudo o resto é supérfluo, secundário, dispensável. Todos os bens materiais do mundo não chegam para pagar uma vida humana que é, por definição, sem preço.
Se nem sempre este valor foi reconhecido como hoje, se ainda na actualidade em certos contextos culturais e em certas circunstâncias peculiares (por exemplo, na guerra) a vida humana pode ser posta em segundo plano em função de bens considerados maiores, sejam eles materiais, espirituais ou outros, o certo é que o direito à vida, em termos da política internacional como à luz das correntes ideológicas predominantes, é considerado como o principal dos direitos humanos. Lê-se na carta internacional dos direitos do Homem, logo no seu primeiro ponto que “todos os Homens têm direito à vida”. Vejamos a lista completa destes direitos:
1 - O direito à vida.
2 - O direito à liberdade e segurança da pessoa.
3 - O direito à igualdade e o direito a estar livre de todas as formas de discriminação.
4 - O direito à privacidade.
5 - O direito à liberdade de pensamento.
6 - O direito à informação e à educação.
7 - O direito de escolher casar ou não e de constituir e planear família.
8 - O direito de decidir ter ou não os filhos e quando os ter.
9 - O direito aos cuidados e à protecção da saúde.
10 - O direito aos benefícios do progresso científico.
11 - O direito à liberdade de reunião e participação política.
12 - O direito a não ser submetido nem a tortura, nem a tratamento desumano ou degradante.
Se a carta dos direitos humanos tem já vários anos de existência, em tempos mais recentes surgiu a necessidade de salvaguardar outro tipo de direitos. Referimo-nos aos direitos sexuais e reprodutivos que são o conjunto de princípios relacionados com a sexualidade e com a saúde sexual e reprodutiva que todos os indivíduos deverão ter garantidos. Não por acaso, quando se começou a pensar em criar esta lista, foi na anterior, ou seja, na dos direitos humanos onde mais do que inspiração, se foi buscar o mote para desenvolver um conjunto de princípios que se considera necessário salvaguardar.
Deste modo, no que respeita ao referido direito à vida, ele foi utilizado para reforçar algumas das questões que se têm colocado a este propósito no que se refere à questão do género. Exemplos disso são que a vida de nenhuma mulher não deverá ser posta em risco devido à gravidez, ou que a vida de nenhuma criança deverá ser posta em causa devido ao seu género, masculino ou feminino. Sabemos que, ainda hoje existem situações de grandes inequidades relacionadas com o facto de se nascer com um sexo masculino ou feminino. Em alguns contextos culturais, ser-se mulher pode ser um factor de risco. Mesmo em contextos considerados mais “evoluídos”, o género continua a ser um factor de desigualdade, existindo contextos em que se proporcionam maiores condições e possibilidades aos níveis familiares (saídas das raparigas à noite), sociais (o que é permitido a uns e outros fazer em contextos sociais – para as mulheres certos comportamentos podem fazer com que sejam vistas como “mulheres mal comportadas”), profissionais (que profissões são mais acessíveis a indivíduos de que género).
Por este motivo, um dos direitos consagrados pela legislação de diversos países é o da não discriminação baseada do sexo. O que não significa necessariamente que esse direito seja garantido a todas as pessoas. De resto, se optou por introduzir este direito também na carta de direitos sexuais e reprodutivos, tal implica necessariamente que esse é ainda um direito que não se encontra plenamente verificado por esse mundo fora. Caso contrário não seria necessário salvaguardá-lo. Por outro lado, não será alheio a este cuidado de quem elaborou a lista o facto de que a sexualidade é algo intrinsecamente humano. Desde que nascemos que somos seres sexuados e sexuais. Sexuados porque, como já foi reforçado, todos nascemos com um determinado sexo biológico, que cria toda uma série de expectativas, ainda antes de se nascer, na fantasia dos pais, potenciado pela tecnologia que permite que este tipo de informação esteja disponível a partir dos cinco meses.
Somos também sexuais porque desde que nascemos que temos uma tendência natural para gostar de experimentar o prazer. Além disso, o mundo da sexualidade não é constituído apenas da dimensão física e muito menos genital do sexo, mas enriquecida por toda uma dimensão imagética, fantasiada, vivida no âmbito do desejo e da atracção, do sonho e da sedução, e tudo isto mesmo que nunca se chegue a concretizar o acto sexual. É exactamente devido a toda esta dimensão da sexualidade que é importante pensar sobre a questão dos direitos sexuais e reprodutivos.
Sendo uma questão que pode parecer relativamente teórica e pertencendo à esfera da ideologia e eventualmente da política, ultrapassa em muito esta vertente e relaciona-se com a vida de todos nós de uma forma muito próxima. No que respeita aos direitos sexuais, como em relação aos direitos humanos, ou outros, temos sempre que ter em consideração que os direitos de uns terminam quando se iniciam os de outros. Se na actualidade é relativamente consensual o facto de que as pessoas têm relações sexuais eminentemente e na grande maioria das vezes por prazer, será o prazer sexual um direito de todos? A resposta aparentemente lógica a esta questão é que sim, ou seja, todas as pessoas têm direito a ter prazer sexual. Mas e se a minha forma de ter prazer interfere com o bem estar de outros, será que se mantém este direito? O exemplo talvez mais actual desta questão é o da pedofilia. Um pedófilo é, por definição, um indivíduo que se excita sexualmente e que tem desejo sexual por crianças e pré-adolescentes. A sua forma preferêncial de ter prazer sexual é, assim, através das relações sexuais com menores. Terá este indivíduo direito a concretizar as suas fantasias e desejos? De acordo com muitos destes indivíduos, a resposta é que sim. De acordo com a maioria das restantes pessoas e de acordo também com a legislação vigente ma maioria dos países, a resposta consensual é que não. Neste caso em particular o direito que um indivíduo tem em ter prazer não é superior à possibilidade de, através desse acto, ser posto em causa o bem-estar e equilíbrio de uma criança.
Um outro exemplo, relacionado com situações que, à semelhança da pedofilia, não são frequentes, mas que vão encontrando alguma expressão em alguns meios, nomeadamente entre os mais jovens. Refiro-me ao sadomasoquismo, ou seja, a todas e quaisquer práticas em que se utilize a indução de dor, humilhação e sofrimento sobre outra pessoa ou sobre si próprio com o objectivo de obter gratificação sexual. Têm as pessoas sadomasoquistas direito aos seus (des)prazeres? É legitimo provocar dor noutras pessoas ou em si próprio para satisfazer as suas fantasias? Durante muito tempo o sadismo e o masoquismo foram considerados como perturbações mentais, como perversões do desejo e portanto como desvios do comportamento sexual considerado “normal”. Porém, o que é considerado normativo num dado momento deixa de o ser num outro e é sempre importante que existam outros parâmetros que nos permitam qualificar um dado comportamento ou preferência como “anormal”. Em relação à pedofilia, já vimos que no momento actual se consideram os direitos da criança ao bem-estar e à protecção como superiores aos desejos de outrém, fazendo com que o desejo do pedófilo seja considerado perturbado. Em relação ao sadomasoquismo, a posição é um pouco diferente, desde que seja praticado entre adultos que consintam em envolver-se nesses comportamentos e também que não sejam motivo de preocupações e angústias que interfiram com o bem-estar subjectivo do indivíduo. É certo que isto se passa ao nível do que é actualmente mais consensual entre os profissionais da saúde mental, e não propriamente ao nível do senso comum em que o olhar sobre este tipo de práticas é ainda pesado.
Mas nem precisamos de recorrer a exemplos tão extremos para continuarmos a discutir as questões dos direitos sexuais. Refiro-me à questão da livre associação amorosa, ou seja, supostamente todos temos o direito de nos relacionarmos amorosa e sexualmente com quem quisermos (e também com quem se queira relacionar connosco). O certo é que se a pessoa com quem optamos por nos relacionar é do mesmo sexo, as coisas mudam um pouco de contornos. Não é que seja proibido o relacionamento afectivo entre pessoas do mesmo sexo (ainda que a não discriminação com base na orientação sexual não esteja consagrada na lei), mas o certo é que o assumir publicamente de uma relação homossexual não é livre de riscos, quanto mais não seja do olhar crítico, chocado, divertido ou de desprezo dos outros. Mas, além disso, existe ainda o risco da discriminação ao nível profissional ou social isto apesar de, na maioria dos casos e, pelo menos entre nós, prevalecer a tradicional tolerância que, nunca deixo de reforçar, não é sinónimo de uma verdadeira aceitação, mas antes uma solução de compromisso devida aos laços afectivos que se tem em relação às pessoas em causa.
Outra área muito actual em que se colocam questões a propósito dos direitos sexuais e reprodutivos é a relativa ao corpo e a quem tem a autoridade ou a liberdade para agir sobre ele. Esta questão coloca-se, por exemplo, ao nível do transexualismo. Como é do conhecimento comum, o transexualismo é uma condição em que existe uma não coincidência entre o corpo biológico, muito em concreto entre os caracteres sexuais (primários e secundários), e a identidade sexual, ou seja, a consciência internalizada de que se é homem ou mulher. Assim, um indivíduo que tenha órgãos e características sexuais femininas pode sentir-se, do ponto de vista psicológico, como um homem. O que acontece é que, na maioria das vezes, essa pessoa vai ter o desejo de modificar o seu corpo em função da sua vivência interna do mesmo, ou seja, vai desejar efectuar uma mudança de sexo para se sentir bem consigo próprio. Se alguém decide fazer uma operação plástica para modificar, por exemplo, um nariz que se considera demasiadamente grande, recorre a um cirurgião desta especialidade, paga e fica com o nariz desejado, no caso de uma operação de mudança de sexo, é necessário um sem número de procedimentos, exames, avaliações, peritagens, para que se chegue à conclusão de que esse indivíduo está em condições ou não de fazer essa operação. Só para se ter uma ideia, é um processo que implica pelo menos 2 anos para estar concluído, isto na melhor das hipóteses e apenas se os peritos, os homens da ciência, decidirem que essa pessoa cumpre com os critérios pré-determinados para o efeito.
Podemos ainda dar um outro exemplo, talvez um pouco mais extremo, para esta questão em particular. Refiro-me à Apotemnofilia, condição de quem tem fantasias sexuais sobre ser amputado de um ou vários membros do corpo. Algumas destas pessoas chegam ao ponto de quererem passar as suas fantasias à prática e de optarem por fazer uma operação para que lhes sejam retiradas as pernas ou os braços, porque é assim que se sentem bem consigo próprias. A questão é: deverá ser-lhes concedido este desejo? Sabemos à partida que tal operação é irreversível e que irá implicar uma série de limitações para a vida do indivíduo, por exemplo, dificuldades na obtenção de um emprego, o que fará com que provavelmente tenha que viver da assistência social; terá certamente que ter uma série de cuidados de saúde especiais que serão que serão suportados pelo Estado. Terá essa pessoa direito de optar por si própria o que fazer em relação ao seu corpo? Quem é que é “dono” do seu corpo: o próprio, o Estado, os técnicos de saúde?
O caso da Apotemnofilia pode servir-nos apenas como um exemplo – extremo talvez – da forma como se salvaguardam ou não os direitos sexuais e reprodutivos dos cidadãos e, mais do que isso, de quem os salvaguarda. Se alguns dos direitos mais básicos, como os relativos ao género, são ainda sistematicamente postos em causa, quanto mais os outros que podem ser considerados como “luxos” ou extravaganças e, logo, como secundários, já para não mencionar aqueles que, exercidos por outros, podem ir contra as nossas convicções ideológicas ou religiosas, caso do aborto?
Há que não esquecer que qualquer direito implica também um dever, dever este que implica a salvaguarda da integridade e bem-estar do outro. Direitos sexuais e reprodutivos são também direitos humanos, ainda que não estejamos sensibilizados para pensá-los enquanto tal. Está, porém, na altura de o fazer e tal é tarefa da responsabilidade de todos nós, não só técnicos de saúde, como profissionais das áreas sociais e humanas, politicos, teóricos, investigadores, homens, mulheres, cidadãos.
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