Quando olhamos para trás, para os acontecimentos que nos marcaram ao longo da nossa vida, quais são os que nos vêm à mente? O primeiro beijo? O falecimento de um familiar querido? A nossa estreia, mais ou menos atribulada, na escola? O dia do nosso casamento? O nascimento do nosso primeiro filho? As possibilidades são múltiplas. Quantos destes acontecimentos marcantes tiveram lugar durante a adolescência? Provavelmente apenas uma minoria deles.
Mas se reformularmos a questão e perguntarmos quantos deles marcaram o início ou o fim de uma fase da nossa vida, provavelmente constataremos que muitos deles, efectivamente, tiveram um impacto decisivo no nosso modo de vermos o mundo, de interagirmos com os outros, enfim, no nosso posicionamento face a nós próprios e face aos outros. Quero com esta discussão chamar a atenção para o facto de que provavelmente a nossa vida é feita de fases, não necessariamente marcadas por aquilo que se convencionou que fossem as “fases normativas do desenvolvimento”, como seja a adolescência.
Um dos problemas é que uma vertente importante da Psicologia, a Psicologia do Desenvolvimento, fez de sua tarefa a delimitação da sucessão de períodos, marcadamente diferentes do ponto de vista qualitativo e quantitativo, que os seres humanos atravessam ao longo da vida, no que respeita a diferentes dimensões do seu funcionamento psicossocial.
São exemplos deste tipo de perspectiva a teoria do desenvolvimento psicossexual de Freud, a teoria do desenvolvimento moral de Kohlberg, a teoria do desenvolvimento cognitivo de Piaget bem como a do desenvolvimento da personalidade de Erikson, só para citar as mais conhecidas. De acordo com esta perspectiva, a transição de cada um dos períodos para o seguinte estaria condicionado pelo cumprimento de determinadas tarefas do período anterior, sem o que tal transição estará inviabilizada.
Do ponto de vista académico e enquanto auxiliar na leitura da realidade, as teorias desenvolvimentais são extremamente úteis, no sentido em que nos permitem a compreensão dos factores que, ao longo do desenvolvimento, são característicos da maioria das pessoas. Podem assim, auxiliar-nos a perceber o que é de esperar que em certos momentos da vida aconteça e também nos alertam para o facto de que existem capacidades e funções que apenas se podem desenvolver após estarem concluídas as anteriores que lhe servem de base. As teorias desenvolvimentais tornam-se obsoletas e transformam-se em factores obstructores do pensamento, quando tomadas como realidades por si, inalteráveis e condicionantes do nosso modo de olhar para a realidade.
Tomemos aqui, como exemplo estratégico, a adolescência. De acordo com as teorias desenvolvimentais da personalidade, bem como do ponto e vista do senso comum, a adolescência é o período cujo início é marcado pela puberdade e cujo final decorre da completa autonomização do indivíduo do ponto de vista funcional, emocional e económico. Esta delimitação seria simples, não fosse o facto de não ser eficaz. Começamos logo por pôr em causa a ideia da puberdade como um acontecimento que marca o início da adolescência. Se é verdade que todo o fogo de artifício hormonal da puberdade é uma verdadeira revolução no processo de desenvolvimento, com marcadas alterações do ponto de vista fisiológico, o certo é que muitas vezes, as mudanças ficam-se mesmo por aí.
Mesmo que, na maioria dos casos, estas mudanças sejam acompanhadas por diferentes formas de o indivíduo se relacionar com os outros, em particular com os pais e com a família, de olhar para o mundo, nomeadamente pelo acesso ao raciocínio abstracto e de um interesse crescente pela sexualidade, o certo é que nem em todos os casos isto acontece e encontramos muitos ditos “adolescentes” cujo funcionamento é francamente infantil, por vezes até aos 16-18 anos, para não dizer mais tarde.
Ou seja, se a adolescência é mais do que um processo de alterações fisiológicas, mas todo um conjunto de mudanças psicológicas, sociais, sexuais e emocionais, então não é possível fixar o seu início no aparecimento da menarca nas raparigas ou das primeiras ejaculações com espermatóides nos rapazes, uma vez que há outros factores a ter em consideração. Só a título de exemplo, sabe-se que, ainda que nas raparigas a puberdade surja em média dois anos antes dos rapazes, estes tendem a despertar para o prazer sexual em média dois a três anos antes das raparigas (Knoth et al., 1988, cit. por Baldwin & Baldwin, 1997), o que nos indica que algumas das alterações que tendemos a considerar típicas da puberdade são na verdade condicionadas por outros factores sociais e culturais que podem antecedê-la.
Se do ponto de vista do seu início é possível questionar a universalidade da adolescência como decorrente da puberdade, no que respeita ao seu final a situação é ainda mais complicada e torna-se quase impossível determinar com algum grau de precisão o momento em que esta “fase” termina. Como foi já referido, aponta-se a autonomização a vários níveis como o indicador de que já se entrou no mundo dos adultos.
Porém, o aumento do período de escolaridade que actualmente, se incluirmos mestrado e, para os mais arrojados, doutoramento, pode chegar aos 30 anos de idade, acrescido das dificuldades que muitos jovens adultos têm em encontrar um emprego minimamente estável e que lhes proporcione um rendimento suficiente para se puderem mudar para um espaço que seja seu, além do puro comodismo que é o de ter comida, cama e roupa lavada em casa dos pais, estamos perante um arrastar da adolescência vida fora, ao ponto de algumas pessoas com 40 e 50 anos poderem enquadrar-se no conceito mais lato de adolescência!
Existe até quem fale da geração canguru, ou seja, aquela que vai permanecendo na protecção e conforto da bolsa materna, diga-se de passagem muitas vezes com o incentivo implícito ou explícito dos próprios pais, até bastante tarde, em particular se comparado com o que acontecia em gerações anteriores.
Assim, acontecimentos que poderiam ser indicadores de uma maior autonomização das figuras parentais e que se poderiam constituir como momentos-chave de entrada na vida adulta (rituais de passagem, se se quiser), como é o caso da maioridade legal (e com ela a possibilidade de votar e de tirar a carta), do cumprimento do serviço militar, do início de uma vida profissional activa, ou até mesmo do ter filhos, acabam, nos dias de hoje por não pôr um ponto final à adolescência.
Outros factores também põem em causa algumas das ideias que vigoram tanto no discurso científico quanto no senso comum sobre a adolescência. Referimo-nos em particular à ideia de que este é um período marcado pela instabilidade, pelos conflitos e pelo sofrimento. Esta é uma herança que nos chega em grande parte de Stanley Hall (1844-1924), psicólogo norte-americano que dedicou uma parte importante do seu trabalho ao estudo da adolescência.
Ainda que, por esse mesmo motivo tenha tido fulcral importância no colocar o enfoque sobre a mesma, a sua perspectiva sobre o adolescente não era das mais positivas. De acordo com Hall, durante este período ocorre como que uma recapitulação das fases de desenvolvimento da humanidade, começando com a barbárie, entre os 7 e os 13 anos, em que o indivíduo não teria posse de funções mentais superiores tais como razão, a moral ou o amor. O progresso ao longo do desenvolvimento permitiria ao indivíduo o alcançar de estadios superiores do desenvolvimento humano. Assim, a adolescência seria caracterizada pela instabilidade - sturm und drang (tensão e agitação) - devido ao facto de recapitular um período histórico de transformações rápidas e caóticas ligadas ao processo civilizacional (Sprinthall & Collins, 1988).
Apesar de muito criticadas na sua época e agora já ultrapassado muitas das suas ideias, chega-nos como uma forte herança de Hall a ideia da adolescência como um momento particularmente problemático do desenvolvimento. Porém, o que os estudos nos demonstram, é que durante o período de vida que decorre aproximadamente entre os 10 e os 21 anos, apenas uma minoria (entre 10 e 20%) sofre de distúrbios psicológicos ou desenvolvimentais graves. O consumo de drogas duras, por exemplo, apesar de chegar à opinião pública com contornos de uma pandemia entre os jovens, ocorre apenas em menos de 2% dos adolescentes portugueses (Matos et al, 2003). Da mesma forma, problemáticas como sejam as relacionadas com o comportamento alimentar (anorexia e bulimia), com a depressão e o suicídio, são característicos de apenas uma minoria dos adolescentes.
O que, de resto, se verifica, é que o funcionamento típico durante a adolescência irá também ser típico durante o resto do percurso de vida do indivíduo, ou seja e a título de exemplo, a delinquência de um adolescente irá muito provavelmente ter continuidade na vida adulta através dos mesmos comportamentos de desrespeito pela integridade e propriedade de outros, da mesma forma que o adolescente que atravessa a transição para a adultícia sem sobressaltos irá muito provavelmente ter uma entrada e continuidade na vida adulta também pacífica.
Donde se depreende que o desenvolvimento psicossocial de cada pessoa é marcado mais pelo progresso e continuidade do que pelos sobressaltos e por paragens mais ou menos bruscas que possam ocorrer nesse processo. Sobressaltos, bem como acontecimentos positivos, podem ser marcantes e afectar o modo habitual de funcionamento do indivíduo, para bem ou para mal. Porém, como já referimos, estes acontecimentos não são apenas conotados ao período da vida a que se convencionou chamar de adolescência, mas a todo o nosso percurso desenvolvimental.
Quais é que são, então, as grandes conclusões que daqui podemos retirar? Uma delas será que a ideia de crise desenvolvimental, ou seja, a conceptualização de momentos da vida em que, tipicamente, todos os indivíduos passam por determinado tipo de problemas (e aqui falamos de adolescência, mas também da meia-idade, da entrada para a escola, entre outras) é altamente questionável. Ainda que Erikson, um dos pais deste conceito, o tenha descrito como um momento de crescimento potencialmente positivo, o certo é que com ele se presume sempre uma standardização no funcionamento psicossocial dos seres humanos, o que os padroniza e lhes retira assim a sua especificidade individual que os torna seres únicos e especiais.
Outra conclusão que daqui se pode retirar, refere-se em particular à adolescência e prende-se ao facto de tanta atenção se dedicar a este período da vida dos indivíduos, correndo-se o risco de efectivamente a problematizar - as realidades também se criam através da veiculação e manutenção deste tipo de ideias. Deste modo, quando no título desta apresentação se refere a terminabilidade da adolescência ou a ausência dela, referimo-nos a duas questões diferentes, mas complementares - a da terminabilidade de uma fase que, no sentido em que se encontra definida, cada vez mais se verifica estar a arrastar vida fora, mas também nos referimos à terminabilidade de um conceito com diversas limitações intrínsecas e que podem afectar a forma como os indivíduos a vivem e também a forma como outros, técnicos em particular, lidam com ela do ponto de vista conceptual e da intervenção.
Referências bibliográficas:
Matos, M. E equipa do Projecto Aventura Social & Saúde (2003). A saúde dos adolescentes portugueses (Quatro anos depois). Lisboa: Ed. FMH.
Sprinthall, N.A. & Collins, W.A. (1999). Psicologia do adolescente. Uma abordagem desenvolvimentalista. 2.ª Edição (Edição original de 1988). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
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